O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abriu a Assembleia-Geral das Nações Unidas nesta terça-feira (19) com um discurso de 21 minutos focado em desigualdade e com o retorno da demanda histórica do Itamaraty de uma reforma no Conselho de Segurança, com críticas incisivas à dinâmica atual do sistema internacional.
O petista voltou ao principal palco global após mais de dez anos e sob a promessa de recuperar a orientação internacionalista da diplomacia brasileira após quatro anos de isolamento, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Com um discurso com indiretas ao adversário político, Lula foi bastante aplaudido ao estabelecer diferenças ante o antecessor.Lula começou o discurso prestando homenagem ao diplomata Sérgio Vieira de Mello, morto em Badgá (Iraque) há 20 anos. Ele também prestou condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades na Líbia e no Rio Grande do Sul para, em seguida, falar sobre a crise climática e a desigualdade, um dos temas centrais de sua fala.”Hoje, ela [a crise climática] bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres”, disse.Ele relembrou que, há 20 anos, a gome fome foi um tema central de seu discurso, e que a pertinência do tema não mudou. “O mundo está cada vez mais desigual.””É preciso, antes de tudo, vencer a resignação que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo”, afirmou.O presidente voltou a apontar que os países mais ricos se desenvolveram com base em um modelo poluente, mas que os países emergentes não querem repetir essa fórmula. “Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas. Os países ricos cresceram baseados em um modelo com alta taxa de emissão de gases danosos ao clima”, continuou.Mencionando a matriz energética brasileira, “uma das mais limpas do mundo”, Lula disse que o país retomou ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. “O mundo inteiro sempre falou da Amazônia, agora é a Amazônia que está falando por si mesma”, continuou.Aplaudido ao repetir que “o Brasil está de volta”, o petista disse que estava ali porque a democracia venceu no país. “O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, nossa região, o mundo e o multilateralismo”, disse, em contraste com a política externa de Bolsonaro. O ex-presidente manteve durante dois anos um chanceler, Ernesto Araújo, que dizia orgulhar-se da condição de pária do país.CONTEÚDO RELACIONADO Jader Filho fala sobre cidades sustentáveis em evento da ONUHelder defende agenda climática global em Nova YorkJader Filho integra debate sobre descarbonização nos EUA”Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais. Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos”, afirmou.Uma dessas prioridades é a transformação do próprio sistema internacional. Lula apontou que o princípio de soberania entre as nações vem sendo corroído, e que as principais instâncias de governança global perderam fôlego. “Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução.”Um dos alvos da crítica de Lula foi o FMI (Fundo Monetário Internacional). O presidente apontou que a instituição emprestou no ano passado US$ 160 bilhões a países europeus, e apenas US$ 34 bilhões para africanos.O presidente atacou a representação desigual do fundo e do Banco Mundial, em que países que contribuem com mais recursos têm maior peso de voto. Para Lula, isso é inaceitável.Com a fala, o petista reforça a pressão por uma reforma dessas instituições. A bandeira foi abraçada também pelos Estados Unidos, que vêm nelas um instrumento para competir com a China -o gigante asiático tem usado financiamento a países em desenvolvimento como forma de obter influência sobre eles.Lula enfatizou a emergência de outros espaços multilaterais para além da ONU, pano de fundo de uma conferência esvaziada neste ano em Nova York.”O Brics surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes. A ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21″Lula mais uma vez defendeu o diálogo como ferramenta para alcançar a paz.”A comunidade internacional está mergulhada em um turbilhão de crises múltiplas e simultâneas. A pandemia da Covid-19, a crise climática e a insegurança militar e energética ampliada por crescentes tensões geopolíticas”, afirmou.”A guerra na Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaços para negociações. Investe-se muito em armamento e pouco em desenvolvimento”, afirmou.Lula ainda fez um apelo em defesa da liberdade de imprensa. Chamando Julian Assange de jornalista, ele disse que o fundador do Wikileaks “não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima”.
“Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos”, completou.Após apontar para o que chamou de paralisia do Conselho de Segurança, instância máxima da ONU, Lula defendeu a reforma da instituição. O presidente encerrou seu discurso cobrando que os países-membros se indignem com a desigualdade e trabalhem para superá-la.Na bancada reservada ao Brasil estavam os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, RodrigoPacheco (PSD-MG), o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, o assessor especial da Presidência Celso Amorim, e o embaixador do Brasil na ONU, Sé rgio Danese. A primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja, acompanhou a comitiva.Um grupo de congressistas brasileiros assistiu ao discurso da galeria. Entre eles, os deputados Guilherme Boulos (PSOL), Zeca Dirceu (PT-PR) e Elmar Nascimento (União Brasil-BA), a deputada Duda Salabert (PDT-MG) e o senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Ministros como Esther Dweck (Gestão), Marina Silva (Ambiente) e Jader Filho (Cidades) estavam no piso da plenária.Antes de Lula, o secretário-geral da ONU, António Guterres, com quem o presidente deve se encontrar na quarta (20), discursou. Ele afirmou que a situação mundial rumo ao multilateralismo pode ser positiva, mas que uma reforma do arcabouço institucional é vital para evitar “ruptura” -a demanda por uma reforma do Conselho de Segurança, pauta do Itamaraty há décadas, foi retomada pelo atual governo.O presidente chegou em Nova York na noite de sábado (16) e deve voltar ao Brasil na quinta (21). A longa estadia contrasta com a de Bolsonaro, que passou menos de 24 horas na cidade no ano passado.O discurso do petista foi feito em um contexto de crescentes críticas à ONU e de competição com outros fóruns multilaterais, como o recém-ampliado Brics, grupo de países emergentes, e o G20, fórum das maiores economias do mundo.Sintoma disso, lideranças do primeiro escalão de China, Rússia e Índia não participam do evento, o que colocou o brasileiro na posição de “porta-voz” do chamado Sul Global em um encontro esvaziado. Do lado das potências, os EUA são o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que serão representados no encontro por seu chefe de governo.Nesse cenário, os dois presidentes estarão nos holofotes durante a semana, assim como o líder ucraniano, Volodimir Zelenski -com quem Lula se reúne na quarta-feira. A conversa com o ucraniano ocorre por volta das 17h (horário de Brasília), no hotel em que o brasileiro está hospedado.A relação entre os dois é turbulenta. Em maio, houve uma tentativa de conversa durante o encontro do G7, mas que acabou frustrado. O lado brasileiro argumenta que ofereceu opções de horário a Zelenski, que não conseguiu comparecer a nenhuma. Os ucranianos atribuem a culpa a Brasília, que teria demorado a responder o pedido de reunião.
Fonte: DOL – Diário Online – Portal de NotÍcias