Hoje, sexta-feira, um bocadinho antes das oito da noite, começa o ano novo judeu. Este ano tomei uma resolução apenas: descabar-me.
Vou descabar-me de uma vez por todas, livrando-me de todos os cabos que tenho. Estou a pensar seriamente em deixá-los todas nas gavetas onde os enfiei, para poder descartar os móveis inteiros onde estão todos aconchegadinhos, a sibilar.
Os cabos prendem-nos ao passado. Tenho aproximadamente 12 cabos por cada década, desde os anos de 70 até ontem.
Daqui a mil anos, quando os arqueólogos forem desenterrar a nossa civilização, só vão encontrar cabos: ninhos de cabos. Outras civilizações deixaram ânforas e azulejos. Nós vamos deixar cabos.
Será preciso criar a profissão de herpetólogo-cabista: o especialista em serpentes eléctricas, o Indiana Jones dos adaptadores.
A Apple acaba de fazer um grande choradinho, porque os maus da União Europeia obrigaram os Picassinhos de Cupertino a usar um cabo para o iPhone que fosse igual aos cabos usados pelas companhias más, para não obrigar o estúpido do consumidor a ter de comprar um cabo diferente para cada dispositivo, e a baralhar assim os pobres neurónios.
Há alguma diferença entre o USB-C e o totalitarismo?
Mas a Apple, da qual sou seguidor de juta e candeia, é a pior produtora de cabos que alguma vez existiu. São muito giros. Mas só durante um mês ou dois, até serem pisados por algum pintassilgo.
Os cabos da Apple ficam roídos pela fricção causada pelas impressões digitais. São concebidos para duas coisas apenas: serem giros e serem substituídos.
E é certinho: passado um trimestre, já estamos a comprar outro. Vá lá, que são baratos: mentira! São caríssimos. Por isso é que choram tanto. Será assim tão difícil conceber um mundo sem cabos e sem adaptadores? Quanto tempo levaria? Meia hora? Que tal os cabecinhas da Apple passarem o próximo ano a pensar nisso, sacrificando, por exemplo, o próximo Apple Watch, que tanta falta fará a quem já tem o 9?
(Transcrito do PÚBLICO)
Fonte: Metrópoles